Do lixo ao luxo II – A Lição sabemos de cor

A cientista Margareth Wheatley, em seu livro Liderança e a Nova Ciência , nos ensina que o caos é um estranho atrator de significados. Quando refletimos sobre os períodos em que estamos mergulhados no caos , podemos perceber que , quando ele termina , emergimos transformados, mais fortes em alguns aspectos, renovados . Abrigamos em nós a dança da criação e aprendemos que evolução sempre requer a passagem pelos tenebrosos reinos da desintegração.

Para enxergar a ordem além do caos é preciso mudar o foco da visão. Num mundo não linear , coisas que a princípio parecem pequenas podem amplificar-se em resultados inesperados e por muitas vezes, positivos, que conduzem a uma nova ordem.

Essa introdução tem a ver com o momento crítico que atravessamos. Como afastar-se da visão do caos e tentar enxergar a nova ordem que vai tomando forma é importante para avançarmos como seres humanos e como corporações . Quando as coisas ficam caóticas, essa clareza nos faz enxergar o sentido das coisas , mesmo que o mundo tenha ficado louco.[1]

Estamos vivenciando uma corrida desenfreada por soluções de transição energética que nos permitam evitar o caos climático e agora , com o conflito no Leste Europeu , o risco de suspensão de fornecimento de gás natural e fertilizantes, impactando a segurança física e alimentar de muitas regiões do mundo. Como olhar para essa tempestade perfeita e emergir com soluções que nos remetam a uma nova ordem mundial, pautada na economia circular?

A solução muitas vezes está diante de nossos olhos. O dia 21.03.2022 foi recheado de notícias alvissareiras para a indústria do Biogás e particularmente, para a inserção do Brasil entre os países de destaque na implementação de  soluções para a transição energética de combustíveis fósseis para energias limpas.

O governo federal anunciou um pacote de medidas de incentivo à produção do biometano no Brasil, que consolidam e promovem ações importantes para o setor , dentre as quais se destacam a equiparação do biogás ao gás natural ,  não somente intra-dutos , como até então, como também no tocante aos incentivos fiscais já existentes – desoneração de 9% de PIS/COFINS , suspensão da cobrança de PIS/COFINS na aquisição de máquinas, materiais e construção e equipamentos para novas usinas, inclusão dos investimentos em biometano no Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infra Estrutura (REIDI).

Foi também instituído  o Programa Metano Zero , que consiste na criação do mercado de créditos de metano, uma iniciativa inovadora , ainda a ser regulamentada, que pretende alinhar-se ao mercado de carbono existente. O programa representa enorme oportunidade econômica e estratégica, reduzindo emissões de gases de efeito estufa, custos de combustível e energia e transformando os produtores rurais e gestores de aterros sanitários em fornecedores de combustível e energias limpas e renováveis, além do importante subproduto, os biofertilizantes com alto valor para a agricultura. [2] Falaremos mais dele nos próximos artigos.

O significado dessas ações , principalmente no cenário mundial atual , de extrema criticidade para o mercado de gás natural e derivados do petróleo, cujos preços saltaram de forma exponencial , é de um caráter estruturante e estratégico e pode mudar o patamar da economia brasileira, tão infelizmente exposta aos decepcionantes voos de galinha em seu crescimento.

O Programa, na nossa visão uma política de Estado, e que como tal deve ser preservada, permitirá de forma rápida o desenvolvimento de novas plantas industriais que gerem biometano, que é obtido no refinamento e processamento do biogás e que , como biocombustível, pode ser utilizado em substituição aos combustíveis fósseis, uma vez que a tecnologia existente já é utilizada em várias partes do mundo e no Brasil, onde se registram 675  plantas de biogás, espalhadas por todo o País, com uma produção anual que chega a 2,22 bi (Nm3/ano) [3].

               Segundo Gabriel Kropsch, vice-presidente da Abiogas, o Brasil tem um potencial da ordem de 43 milhões de m3 por ano , o que seria suficiente para substituir quase 80% de todo o óleo diesel consumido no país ou um quarto da demanda nacional por energia, por uma fonte renovável e de custo competitivo.[4]

Ainda segundo a  Abiogas , o setor privado está preparado para investir cerca de R$ 60 bilhões em novos projetos até 2030, em plantas localizadas em aterros sanitários, usinas de cana de açúcar e fazendas de suínos, principalmente. [5]

Dentre as medidas anunciadas ontem , serão implantadas 25 plantas demonstração da tecnologia, a serem implantadas nas regiões Sul, Sudeste e Centro Oeste do País. Contudo, não se sabe por que as regiões mais desiguais do Brasil – Norte e Nordeste – não foram contempladas. Imaginamos que isso não tenha nada a ver com o agronegócio , dada a fortaleza nordestina na produção de aves e ovos, na cultura de cana de açúcar, na sua bacias leiteiras e na pujança verificada na produção de grãos no oeste baiano e cerrado piauiense. Também não se aplica à questão dos aterros sanitários e lixões, espalhados por todos os rincões deste país.

O País do agronegócio é ao mesmo tempo o país dos lixões – Segundo a Associação Brasileira de Empresas de Tratamento de Resíduos e Efluentes (Abetre), ainda existem no país 2.612 lixões a céu aberto em operação, que provocam desigualdade, miséria e doença. Em 2019, no Ceará existiam 301 lixões, somente 21 municípios tinham programas de coleta seletiva e apenas 10 municípios cearenses dispunham de aterros.

 Ambas as atividades geram resíduos contaminantes, que impactam severamente o meio ambiente e as condições de vida das populações menos favorecidas.  Contudo , devem ser olhadas pelo viés de solução e não de problema. Espera-se que a iniciativa quanto às plantas demonstração  se espalhe por todo o Brasil. A utilização econômica e inteligente de resíduos proporciona melhor qualidade de vida para todos e por essa razão deve ser democratizada.

Os resíduos do agronegócio e o processamento e os resíduos sólidos urbanos, transformados em biofertilizantes e  biometano, com o adequado processamento e tratamento,  geram riqueza e empregos para o País. São na realidade, matéria prima para o desenvolvimento.

Uma das maiores produtoras de ovos do Brasil investiu recentemente, segundo dados da Bloomberg, R$ 50 milhões para construir em Minas Gerais e no Tocantins duas fábricas de fertilizantes orgânicos enriquecidos com minerais fosfatados. 14 milhões de aves, produzindo 7,2 milhões de ovos todos os dias fornecem a matéria prima para um dos ativos agrícolas mais valorizados ultimamente , em consequência da guerra no Leste Europeu – os fertilizantes.[6]

Como já me referi em artigo anterior nesta coluna [7] “ O reconhecimento do lixo e do esgoto não como um passivo ambiental, mas como um ativo energético, conjugado a ações de fortalecimento do marco regulatório do setor parecem sinalizar uma luz no fim do túnel. Sair do lixo ao luxo da geração de energia renovável e limpa, com redução de emissões de gases estufa, incorporação de novas tecnologias e geração de emprego e renda pode ser a solução dessa equação complexa.”

O Nordeste e o Ceará inserem-se de forma soberana nesse processo, tanto por já utilizar com pioneirismo a tecnologia de valorização do gás em seus resíduos sólidos , quanto por possuir um agronegócio forte e um severo problema de lixões a resolver .

Com as regiões de saneamento definidas em marco legal estadual, com a possibilidade de transporte veicular do gás produzido em aterros e plantas mais distantes dos gasodutos atualmente instalados, com os gasodutos já existentes que ligam o Pecém ao mapa de gasodutos do Nordeste e Sudeste e todo o espírito empreendedor do Ceará, acredito que estamos prontos para embarcar nessa jornada rumo a um futuro mais promissor , de céu azul e ar respirável , energia limpa e segurança alimentar .

Essa é uma dívida que temos com nossas próximas gerações e da qual não podemos nos esquivar.

A lição sabemos de cor . Só nos resta aprender.

[1] Liderança e a Nova Ciência – descobrindo a ordem num mundo caótico – Margareth Wheatley (2006)

[2] https://energiaebiogas.com.br/governo-federal-lanca-o-programa-nacional-metano-zero

[3] CIBIOGAS

[4] Revista Globo Rural –dez.2020

[5] https://revistagloborural.globo.com/Noticias/Economia/noticia/2022/03/incentivo-ao-biogas-inclui-suspensao-de-impostos-e-creditos-de-metano.html

[6] https://www-bloomberglinea-com-br.cdn.ampproject.org/c/s/www.bloomberglinea.com.br/2022/03/14/coco-de-galinha-vira-negocio-de-milhoes-para-produtor-de-ovos/?outputType=amp

[7] https://www.linkedin.com/pulse/do-lixo-ao-luxo-o-c%C3%ADrculo-virtuoso-da-valoriza%C3%A7%C3%A3o-de-res%C3%ADduos-gaspar/?lipi=urn%3Ali%3Apage%3Ad_flagship3_profile_view_base_post_details%3BNDknpcr8SEKTEcTJXhnsow%3D%3D

Deixe um comentário