A Infraestrutura e o dilema do excesso de garantias – quando todos perdem

O crescimento lucrativo e sustentável de uma empresa  se constrói nas ações do dia a dia. Scott Sonenshein, em seu livro O Poder do Menos – O Segredo da Alta Produtividade,  alerta que em cenários de recursos escassos é primordial atingir um potencial extraordinário com o que já temos.

Em financiamento à Infraestrutura, esse é praticamente um exercício diário . Para melhor compreensão do leitor não familiarizado com o assunto, faz-se necessário falar um pouco sobre as técnicas de financiamento a Infraestrutura atualmente utilizadas no Brasil e no Mundo.

O uso das técnicas de Project finance para viabilizar o financiamento e implantação de projetos de infraestrutura é procedimento já consagrado e amplamente utilizado no planeta. Em terras brasileiras, embora não utilizado em seu formato puro, permitiu viabilizar investimentos em energias renováveis , com a adoção do Programa de Incentivo a Fontes Alternativas de Energia – PROINFA , através do qual foram assinados os primeiros contratos de compra e venda de energia ( CCVE ) ou, para usar a linguagem mais técnica , os Power Purchase Agreement (PPAs) .

Para esses tipos de financiamento, que envolvem volumes de recursos muito significativos, costuma-se atuar com operações estruturadas , que são construídas e/customizadas caso a caso , de acordo com as características e necessidades de crédito a cada projeto de investimento.  É uma construção que envolve recursos, garantias, financiadores , investidores, seguradoras e outras partes interessadas, e que tem como características fundamentais:

 a segregação do investimento dos balanços da empresa investidora, através de uma Sociedade de Propósito Específico;

Negócio majoritariamente financiado por dívida ou captação de recursos de investidores;

Garantia  do financiamento pelas receitas do negócio, com instrumentos de mitigação de risco baseados num conjunto de obrigações dispostas em diversos contratos;

Longo prazo de amortização e carência, adequados às características do empreendimento.

No Brasil,  tais projetos tem sido , ao longo dos anos , apoiados por Bancos de Desenvolvimento , Bancos de Investimento e Agências Multilaterais. Na prática, a estruturação das garantias dessas operações , que é o ponto chave desta discussão , é feita em duas fases – a fase pré-operacional e a fase operacional.

A fase pré-operacional , de risco mais elevado, é a fase inicial do projeto , ou fase de construção, onde os Bancos usualmente requerem garantias mais robustas, a exemplo de fianças bancárias , seguros garantias e contas reserva , que oneram bastante o tomador, além das usuais como penhor de ações, alienação fiduciária de equipamentos e fianças corporativas.

A segunda fase , ou fase operacional, ocorre quando o empreendimento está implantado, operando e com os recebíveis do contrato sendo performados, pagos regularmente. Nesse momento, é comum que os financiadores admitam ajustar o perfil de garantias , substituindo a fiança bancária pela cessão fiduciária dos recebíveis do contrato.

Até aqui, nada de novo. Contudo, temos observado que  muitos empreendimentos maduros , com operações de financiamento contratadas há mais de 06(seis) anos, em fase de reembolso, usualmente apresentam condições de garantia e de mitigação de riscos em patamares excessivos , que foram  definidas para um momento de implantação do empreendimento mais sujeito a riscos.

Em nosso trabalho de consultoria, onde atuamos apoiando empresas nessas negociações, chegamos a analisar casos em que a relação garantia versus dívida ultrapassava 10 para 1 , mesmo em empreendimentos performando há mais de 06 anos. Reduzir no mínimo pela metade tal relação faria uma enorme diferença na capacidade de mobilizar novos ativos para captação por parte das empresas.

A boa prática bancária nos orienta que garantias devem ser suficientes e adequadas para mitigar os riscos visualizados pelo credor, proporcionando o conforto necessário para seguir com o crédito . O excesso de garantias nada acrescenta aos Bancos, pois não reduz eventuais provisões para devedores duvidosos e tampouco as Instituições Financeiras podem se aproveitar desse excesso numa eventual inadimplência.

Ao contrário, excelentes oportunidades de novos negócios podem estar sendo perdidas pelos Bancos, que poderiam atuar como captadores ou coordenadores líderes de captações em mercado para tais empresas , utilizando-se dessa margem de garantias represada.

Por outro lado, a  manutenção de tais condições demasiado severas de garantias , apos a comprovada maturidade em receitas dos projetos , implica em custos elevados e desnecessários às empresas em tal situação.  

Bancos tem políticas de risco e compliance bem robustas ,  formalizadas e acompanhadas pelo regulador, que é o Banco Central do Brasil. Não se trata de questionar tais políticas, mas somente chamar a atenção para uma fase pouco lembrada do Project finance no Brasil, que é o refinanciamento ou readequação das condições de financiamento e que deveria estar sendo exercitada com mais frequência por ambas as partes, devedor e credor.

Manter garantias em excesso aprisionadas em operações maduras pode impedir as empresas de utilizar parte de seus recebíveis para as futuras expansões, novos investimentos e inclusive, no caso das empresas de energias renováveis , realizar captações em debêntures e  títulos verdes, lembrando que estes últimos atualmente apresentam as melhores taxas de captação do mercado.

Abro aqui um parêntesis para chamar a atenção sobre o horizonte de novos investimentos em energia , seja em geração , transmissão e distribuição que se descortina para breve. Estudos da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) apontam que 241 grandes fazendas solares e parques eólicos devem entrar em operação comercial no Brasil até janeiro de 2026, injetando quase 6 mil MW de potência ao sistema elétrico. Os dados são de projetos já contratados em leilões de energia nova realizados nos últimos anos pela própria CCEE e pela Aneel.

O investimento destinado à construção dos empreendimentos soma R$ 34 bilhões e será aplicado por empresas que têm apostado cada vez mais no potencial brasileiro para geração renovável.

Isso sem falar nas dezenas de projetos submetidos ao IBAMA para eólica off-shore, aguardando definições dos órgãos reguladores para os passos iniciais dos processos de licenciamento e busca de recursos para investimento.

A esse cenário soma-se outro componente, pouco lembrado pelo mercado, mas que vem se tornando a cada ano de urgente revisão.

O Brasil é o sexto maior gerador de energia eólica do mundo e possui mais de 21 giga de potência eólica instalada e em operação comercial. O parque eólico mais antigo está em operação desde 1998 e além deste, outros dois operam há mais de 20 anos, totalizando 17,5 MW. Os primeiros parques eólicos montados na esteira do PROINFA tiveram suas operações iniciadas em 2006. A partir de 2011, iniciou-se a operação dos parques vencedores do Leilão de Reserva de 2009. Entre os anos de 2011 e 2020 foram instalados novos parques que acrescentaram mais de 14 GW de potência ao sistema elétrico brasileiro e com preço de contratação em média inferior a R$ 200/MWh.

Desses, mais de 50 parques, compreendendo mais de 600 aerogeradores e 940 MW de potência, foram instalados até o fim de 2010. Estes parques ultrapassarão os 20 anos de operação até 2030 e deverão enfrentar questões relativas à repotenciação e retrofit , alinhados à tendência mundial , exigindo investimentos para troca e retrofit de aerogeradores , iniciativa mais do que recomendável, pois são estruturas que podem estender sua vida útil, gerando a energia de que tanto o Brasil precisa.

Para tudo isso são necessários recursos. De onde virão ? Os Bancos Públicos já não dão conta da demanda atual . Há que se buscar opções em mercado de capitais e instrumentos financeiros alternativos para resolver essa equação.

Há luz no fim do túnel. Todas essas iniciativas são elegíveis como títulos verdes. Mas isso funciona realmente no Brasil ? Vamos aos números .

Em relação a debêntures, de janeiro até 20 de maio deste ano, já foram aprovadas emissões de R$ 3,02 bilhões por meio de debêntures incentivadas, o que já supera o volume de R$ 2,99 bilhões captado em todo o ano passado, segundo o Ministério do Desenvolvimento Regional.

Está em curso no Congresso mudança no marco Legal que prevê redução no Imposto de Renda  para o emissor das debêntures de infraestrutura. Isso reduz substancialmente o custo da captação , o que pode estimular muitos investidores e empresas a participar de novos empreendimentos.

Quanto a títulos verdes, em novembro de 2020 o BTG PACTUAL fez sua primeira emissão verde, um private placement no valor de US$ 50 milhões , com taxas de 2,75% a.a. e vencimento em janeiro.2026. Os papéis foram destinados a investidores qualificados e listados na Bolsa de Luxemburgo.

Em janeiro deste ano, o BTG fez uma nova captação, um green bond de US$ 500 milhões. Desse total, 71% já foram alocados em 27 empresas. A emissão faz parte de um programa do banco para fomentar financiamentos sustentáveis em setores como energia renovável, eficiência energética, saneamento, transporte limpo, edifícios sustentáveis, habitação e infraestrutura básica acessíveis, manejo sustentável e agricultura de baixo carbono, transmissão de energia, controle da poluição e eficiência energética.

A JBS realizou operação de “sustainability-linked bonds” (SLB) com yield de 3,75% ao ano e cupom anual de 3,625%. O vencimento dos títulos é em 2032, com metas intermediárias a serem cumpridas pela multinacional a partir de 2025. Caso não sejam cumpridas, os juros pagos aos detentores dos títulos aumentam 0,25 ponto percentual ao ano.

O lastro garantidor de todas essas operações é comum – os recebíveis dos projetos. Os projetos maduros podem sim, ser a alavanca de garantias para suas repotencializações, expansões e até para a fase pré-operacional dos novos projetos , desatrelando os investidores de estruturações de garantias de elevado custo. É onde podemos atingir um potencial extraordinário que o que já temos em mãos.

Contudo, enquanto a visão dos bancos brasileiros, públicos e privados, não se tornar mais sistêmica em relação ao assunto, perdem as empresas, assumindo custos elevados e desnecessários e perdem os Bancos , ao não perceber a oportunidade de realização de novos negócios quando incorporam aos seus processos a prática de revisão de garantias como uma etapa comum dos passos de um Project finance e que permitiria com segurança e mitigação de riscos, potencializar novos negócios a partir de garantias já existentes.

Referências :

(1) O Poder do Menos – O Segredo da Alta Produtividade – Scott Sonenshein

(2) Green Bonds – O que são os títulos verdes e e como utilizá-los para alavancar a inovação (2018) – ABGI

(3) Manual de Project Finance no Direito Brasileiro (2016) – André Castro Carvalho e Leonardo Freitas de Moraes e Castro( organizadores)

(4) https://www.jota.info/coberturas-especiais/pl-debentures/o-que-esta-em-jogo-no-pl-das-debentures-da-infraestrutura-18052022

(5) https://www.canalenergia.com.br/noticias/53216223/brasil-deve-ganhar-240-usinas-eolicas-e-solares-ate-2026-afirma-ccee

(6) Expansão da Geração – Empreendimentos eólicos ao fim da vida útil : Situação Atual e Alternativas Futuras – 2021 – EPE

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