Do lixo ao luxo – o círculo virtuoso da valorização de resíduos

Resumo desse artigo foi publicado na coluna de Egídio Serpa, no jornal Diário do Nordeste em 02.dez.2021

Na Natureza nada se exaure em seu primeiro uso. Quando uma coisa serviu ao máximo a um fim, é inteiramente nova para um serviço posterior. Essa máxima de Ralph Waldo Emerson[1] seria uma espécie de mantra para o que chamamos de economia circular – e que no final das contas, é uma tentativa do ser humano de emular a natureza, onde a realimentação dos processos biológicos é contínua, diferentemente dos nossos processos industriais. Ver esse conceito começar a ser discutido e implementado empresarialmente é um avanço, frente à séculos de expropriação ambiental e de desperdício de capital natural.

Economia circular associa desenvolvimento econômico a um melhor uso de recursos naturais, por meio de novos modelos de negócios e da otimização nos processos de fabricação com menor dependência de matéria-prima virgem, priorizando insumos mais duráveis, recicláveis e renováveis. Trata-se de um aperfeiçoamento do sistema econômico atual, que visa um novo relacionamento com os recursos naturais e a sua utilização pela sociedade.[2]

Dentro da gestão de resíduos sólidos urbanos (RSU) esse conceito se faz ainda mais pertinente. Segundo a Associação Brasileira de Empresas de Tratamento de Resíduos e Efluentes (Abetre), ainda existem no país 2.612 lixões a céu aberto em operação, que provocam desigualdade, miséria e doença. Em 2019, no Ceará existiam 301 lixões, somente 21 municípios tinham programas de coleta seletiva e apenas 10 municípios cearenses dispunham de aterros.

O Ministério do Meio Ambiente estima que cada brasileiro gera, em média, 1 kg de resíduos sólidos urbanos por dia, e que toda a população brasileira gere aproximadamente 71 milhões de toneladas de resíduos por ano, sendo que apenas uma parte desse montante é destinada de forma ambientalmente adequada. No Nordeste, estima-se que só no ano de 2019 foram produzidas 19.700.875 toneladas de RSU, atrás apenas do Sudeste com 39.442.995 toneladas.

               Podemos realmente aprender com a Natureza? O que agora foi bom para nós terá sido bom para o mundo que nos abriga como espécie?

O reconhecimento do lixo e do esgoto não como um passivo ambiental, mas como um ativo energético, conjugado a ações de fortalecimento do marco regulatório do setor parecem sinalizar uma luz no fim do túnel. Sair do lixo ao luxo da geração de energia renovável e limpa, com redução de emissões de gases estufa, incorporação de novas tecnologias, geração de emprego e renda pode ser a solução dessa equação complexa.

               O lixo e o esgoto, quando adequadamente tratados e com a tecnologia adequada, transformam-se em biometano (biogás), tornando-se fonte de geração de energia renovável de baixo carbono e contribuindo para a geração de empregos e o desenvolvimento sustentável das economias, atuando diretamente na redução de desigualdades, pelo impacto positivo causado nos determinantes de saúde e qualidade de vida da população.[3]

               Alguns empreendedores corajosos iniciaram essa jornada lá atrás, incorporando tecnologia e apostando na geração do biogás ou biometano como substitutivo para combustíveis de origem fóssil e como alternativa para a gestão adequada dos resíduos produzidos pela indústria sucro alcooleira, agronegócio e saneamento.  Hoje no Brasil temos 638 plantas de biogás em operação, com 1.8 bilhões de m3 produzidos /ano, o que representa um crescimento nos últimos cinco anos na faixa de 20% ao ano. Cerca de 79% das plantas de biogás estão no agronegócio, mas o maior volume de produção hoje decorre das estações de tratamento de esgoto e de resíduos sólidos. [4]

               O Ceará, com seu espírito empreendedor, não deixou por menos. É do Ceará a primeira usina de tratamento do biogás do Norte e Nordeste. O empreendimento é uma parceria entre a Marquise Ambiental e a Ecometano. Localizada no Aterro Municipal Oeste de Caucaia (ASMOC), a planta possui um sofisticado sistema de tratamento de gás natural renovável e já atingiu a capacidade de produção de 90 mil m³ de biometano por dia, tornando-se a segunda maior unidade do gênero do País e deve suprir cerca de 20% da necessidade de gás para as residências, para o comércio e para as indústrias do Ceará. Também através dela é possível evitar a emissão de metano, que é 25 vezes mais nocivo como gás de efeito estufa ante o CO2 (dióxido de carbono) beneficiando, dessa forma, o Meio Ambiente e as gerações futuras. 

               Trazendo a perspectiva para o nosso quintal, estamos no Brasil há décadas tentando resolver o problema dos lixões a céu aberto, sem êxito, até agora. Não por falta de tecnologia adequada para fazê-lo – a tecnologia dos biodigestores é bem antiga – mas certamente por carência de um ambiente de negócios adequado e devidamente regulado, que traga segurança jurídica aos investidores.

Alguma coisa começa a mudar. O advento do Marco Regulatório do Gás Natural ( Lei 14.134, de 08.04.2021); a criação de uma Frente Parlamentar em Defesa das Energias Renováveis , destinada ao desenvolvimento do setor, buscando transformar o Brasil numa potência mundial e referência nesse segmento ; o Projeto de Lei 3865/2021, de 03.11.2021, que Institui o Programa de Incentivo à Produção e ao Aproveitamento de Biogás, de Biometano e de Coprodutos Associados – PIBB , em moldes muito semelhantes ao do exitoso PROINFA , são exemplos de ações regulatórias relevantes, concluídas e em andamento.

Em setembro de 2021 , foi assinado um acordo de cooperação entre o Ministério do Meio Ambiente, a Associação Brasileira de Cimento Portland (ABCP), a Associação Brasileira de Empresas Tratamento de Resíduos e Efluentes (Abetre), a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) e a Associação Brasileira do Biogás (Abiogas), que deu início à uma série de ações para criar um ambiente de negócios favorável para investimentos no setor.[5]

O acordo objetiva o desenvolvimento do Atlas de Recuperação Energética de Resíduos Sólidos, uma ferramenta digital que indicará as regiões com maior potencial para investimentos em recuperação energética. A ferramenta deverá permitir visualizar o fluxo de resíduos entre os municípios e prever onde há mais viabilidade econômica para o aproveitamento desse material, o mapeamento de todas as unidades de reciclagem, enfim, ter o aproveitamento energético mapeado para orientar os investidores sobre as melhores opções de escolha para implantação dos empreendimentos com informações atualizadas sobre a infraestrutura relacionada – linhões, logística de transporte, gasodutos, ferrovias, portos.

A Orizon Valorização de Resíduos foi a primeira empresa a vencer leilão de energia realizado pelo governo com uma usina térmica que gera energia a partir do lixo. A concorrência, realizada em 30.09.21, movimentou contratos para abastecer cinco distribuidoras do país. Com potência de 20 MW (megawatts), o projeto custará R$ 520 milhões e será construído em Barueri, na região metropolitana de São Paulo. A potência é equivalente ao consumo de 320 mil pessoas, segundo a empresa vencedora. Foi o primeiro leilão de energia promovido pelo governo com possibilidade de participação de projetos de geração movidos a resíduos sólidos urbanos. Segundo a Orizon, a usina vai consumir cerca de 300 mil toneladas de resíduos por ano.[6]

O mundo está na fronteira de alterações substanciais no modo de fazer negócios. O movimento rumo a um capitalismo natural está se tornando inevitável. E sua empresa, vai perder esse hyperloop[7] ?

[1] Ralph Waldo Emerson (Boston, 25 de maio de 1803 – Concord, Massachusetts, 27 de abril de 1882) foi um famoso escritor, filósofo e poeta estadunidense.

[2] https://www.portaldaindustria.com.br/industria-de-a-z/economia-circular/

[3]https://www.linkedin.com/pulse/transi%C3%A7%C3%A3o-energ%C3%A9tica-p%C3%A9s-ch%C3%A3o-e-olhos-voltados-para-o-cibele-gaspar

[4] Dados CBIOGÁS

[5] Dados Ministério do Meio Ambiente

[6] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/09/termica-a-lixo-em-barueri-e-primeira-a-vencer-leilao-de-energia-do-governo.shtml

[7] Hyperloop é um modo proposto de transporte de passageiros e / ou carga, usado pela primeira vez para descrever um projeto de trem de carga de código aberto lançado por uma equipe conjunta da Tesla e da SpaceX.

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